domingo, 12 de janeiro de 2020

10 ANOS APÓS TERREMOTO 

‘Não há Estado. Sou o meu próprio Estado’, diz sobrevivente da tragédia que matou mais de 200 mil pessoas

A cadeira de rodas danificada de Herlande Mitile não permite que ela deixe a desolada localidade de Lumane Casimir, que o Haiti queria que se tornasse um modelo de reconstrução após o terremoto de 2010.

Aos 36 anos, essa mulher, incapacitada desde o terremoto, sobrevive por caridade dos vizinhos.
Antes de 12 de janeiro de 2010, a jovem comerciante de Porto Príncipe não entendia nada de terremotos. No final de tarde daquela terça-feira, mais de 200 mil haitianos tinham morrido, esmagados pelas estruturas dos prédios construídos fora das normas de segurança.
Oito dias depois do desastre de grau 7 de magnitude, os serviços de resgate conseguiram tirar Herlande dos escombros. Ela estava viva, mas gravemente ferida.

“Estou mais incapaz aqui”

“O médico me disse que se eu seguisse um tratamento de fisioterapia poderia voltar a andar, mas, para isso, precisaria fazer o tratamento na cidade. Preciso de dinheiro para o transporte e não tenho nada. Por isso, fico mais incapaz aqui”, lamenta Herlande, que tem placas metálicas nos quadris e na coluna vertebral.
Herlande Mitile, sobrevivente do terremoto no Haiti (Foto: Chandan Khanna / AFP)
Herlande Mitile, sobrevivente do terremoto no Haiti: ‘Não há Estado. Sou o meu próprio Estado’. 
Após viver por três meses em uma das centenas de acampamentos improvisados que surgiram na capital haitiana depois do desastre, Herlande e suas duas filhas foram morar em Lumane Casimir. O Estado ofereceu casas nesse local para 50 pessoas que ficaram incapacitadas após o terremoto.
O governo planejava transformar o povoado, que recebeu este nome em homenagem a uma cantora haitiana, em um modelo de urbanismo para um país que hoje em dia segue sem registros de propriedade.
O projeto era atraente: o local teria três mil casas construídas à prova de abalos sísmicos, um mercado, uma zona industrial, uma delegacia, um quartel dos bombeiros, uma escola e um posto de saúde. A construção de toda essa estrutura, no entanto, nunca aconteceu.
Como centenas de outras obras públicas inacabadas, essa foi financiada pelo fundo Petrocaribe. O programa assistencial, criado pelo falecido presidente venezuelano Hugo Chávez em 2005, buscava oferecer petróleo a preço subsidiado ao Caribe e a países da América Latina.
Desde 2018, aumentaram em todo o país o número de manifestações exigindo a transparência sobre o Petrocaribe, já que o programa sofreu denúncias de corrupção.

Oportunidade para alguns


Em 2010, o contrato inicial do projeto para Lumane Casimir, estimado em 50 milhões de dólares, estava vinculado a uma empresa pertencente a um senador dominicano, cujos bens foram congelados pelos Estados Unidos. A obra foi abandonada em 2014, faltando construir metade das casas.
O escândalo dos fundos Petrocaribe acabou com o projeto para esse povoado, mas o abandono administrativo gerou um grande interesse pelas casas construídas.
“Vim viver aqui porque os aluguéis ficaram muito caros no meu antigo bairro”, conta William Saint-Pierre, que se tornou morador do local sem pagar nada, simplesmente ocupando uma das casas vazias.
Além de não pagar nenhum aluguel pela casa de dois quartos que mora e também nenhum imposto pelo seu pequeno negócio informal, William aprecia a segurança existente no povoado de Lumane Casimir, com suas casas coloridas enfileiradas.

Isolamento

“Na cidade, entre as 17h e 18h, é preciso ficar dentro de casa, protegido por portas de ferro. Já aqui, tenho uma pequena porta de madeira e as casas sequer têm um muro ao redor para protegê-las. Ouvir tiros durante o dia? Não dá mais, meu coração está muito velho para isso”, relata Saint-Pierre, de 62 anos.
Embora o isolamento geográfico e administrativo do povoado faça com que os habitantes dali não precisem enfrentar bandidos, também há pontos negativos.
No caso de Herlande, como não pode se deslocar para buscar um emprego e não recebe nenhum tipo de ajuda financeira, ela depende integralmente da ajuda dos seus vizinhos.
“Às vezes quero morrer”, diz a cadeirante, que fala baixo para que suas filhas de 12 e 16 anos não ouçam essa confissão. “Quando meus vizinhos cozinham, eles chamam minha filha mais nova e dizem para ela buscar uma tigela. Antes do terremoto, nós conseguíamos nos virar, mas agora me sinto tão incapaz quanto um bebê”, lamenta.
Nesse povoado abandonado, os atingidos pelo desastre compartilham da sensação de terem sido esquecidos pelo poder público.
“Se ficássemos esperando suas promessas, estaríamos mortos”, ressalta Herlande. “Não há Estado. Sou o meu próprio Estado”, finaliza.

AS INFORMAÇÕES SÃO DE CARTA CAPITAL
EDIÇÃO DE ANB 

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