terça-feira, 29 de outubro de 2019
Não se pode admitir retaliações, intimidações,
asfixia econômica ou regulamentações que visam a enfraquecer a atividade jornalística
Outra repercussão mundial semelhante ocorreu com
o vazamento de dados de empresas offshore em paraísos fiscais, em contas
abertas pelo escritório panamenho Mossack Fonseca. O Panama Papers, como
ficou conhecido, teve como protagonista o Consórcio Internacional de
Jornalistas Investigativos (ICIJ) que organizou trabalho de apuração e
divulgação a partir de uma rede intrincada de cerca de 400 jornalistas, de 76
países, inclusive com participação, no Brasil, do Poder360, do jornal O
Estado de S. Paulo e da RedeTV!. Os dados foram obtidos, inicialmente,
pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung, por meio de uma fonte
anônima, e depois compartilhados com o ICIJ.
Por Marco Aurélio de Carvalho
A divulgação de informações de agentes
públicos envolvidos na Operação Lava Jato tem gerado debate
interminável e acalorado. Bom que seja assim. Alguns conteúdos são
estarrecedores e o assunto é grave. O que se ouviu, até agora, explicita
inegável parcialidade na condução de casos emblemáticos para o país e desvenda
condutas não condizentes com servidores do Estado que deveriam agir sob o manto
sagrado dos ordenamentos republicanos.
O tema do direito à informação e a virtude
da liberdade de imprensa, valores intrínsecos da democracia, emergem como
pivô de uma discussão que conta atualmente com novos atores. Assuntos
relevantes na agenda internacional conseguem vir à tona, hoje, por meio de um esforço
inédito de entidades que combinam jornalismo, preservação de fontes anônimas e
ciberativismo em torno da bandeira de democratizar a informação, o que
significa, em última análise, escarafunchar segredos privados e públicos.
O impacto da revelação de documentos secretos de
governos e empresas foi ampliado quando organizações jornalísticas do porte de
EL PAÍS, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e The
New York Times emprestaram sua credibilidade concedendo amplo espaço
para inúmeras e significativas revelações. Em parceria com o Wikileaks,
compartilharam dados sobre operações secretas do governo norte-americano no
Afeganistão, guerra no Iraque, troca de e-mails de diplomatas norte-americanos
em negociações reservadas com a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, Tratado
Norte-Americano de Livre Comércio, União Europeia, entre outros temas de
interesse global.
São novas configurações midiáticas, inusitados
caminhos da notícia e tempos de pós-verdade. Eleições pelo mundo afora
empoderaram líderes com viés autoritário e populista, empenhados em
desacreditar a imprensa, retaliar veículos de comunicação e perseguir
jornalistas. Atitudes deploráveis que debilitam ainda mais os valores da
democracia. Infelizmente, transformaram-se em retóricas e práticas cada vez
mais institucionalizadas, rasgando o protocolo de tolerância, respeito e
civilidade com a imprensa.
![]() |
O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa em agosto de 2019. |
O Judiciário é a instância que pode evitar essa
escalada sombria. No Brasil, foi o Supremo Tribunal Federal que
extinguiu a Lei de Imprensa, um resquício da ditadura militar que perdurou até
2017. Na Inglaterra, recentemente a Justiça britânica reiterou a
inviolabilidade da imprensa no caso que ficou conhecido como “as noivas do
Estado islâmico”. A Scotland Yard solicitou acesso a anotações dos jornalistas
e às imagens brutas que não foram ao ar, relativas a uma jovem inglesa que se
uniu ao grupo terrorista Estado Islâmico. O repórter Anthony Loyd,
correspondente de guerra do The Times, entrevistou a moça em um
campo de refugiados. Para a Scotland Yard era necessário obter, em nome das
leis antiterror e da segurança nacional, o material não publicado. A vitória
foi da imprensa.
O judiciário entendeu que o ofício dos
jornalistas requer garantias para a confiança, sigilo e proteção do conteúdo
apurado e das fontes — elementos cruciais no trabalho da imprensa. A
liberdade de imprensa é inegociável e o trabalho dos jornalistas não deve ser
cerceado ou sofrer embaraços. O trabalho do The Intercept Brasil e da rede de
jornais e órgãos de comunicação do pool que divulga os bastidores da Operação
Lava Jato (Folha de S.Paulo, Veja, EL PAÍS, entre outros)
significa inestimável prestação de serviço para a democracia e para a
sociedade. É o triunfo do direito de saber.
Evidentemente que não se trata de romantizar ou
idealizar o jornalismo, às vezes representado por Clark Kent, super-herói,
invencível, que luta pelos mais fracos e oprimidos. As organizações
jornalísticas apresentam suas contradições, alinhamentos, interesses, ambições
financeiras. Há erros, apurações imperfeitas, vulnerabilidades e, em alguns
casos, falhas passíveis de punição. A lei é repleta de dispositivos para
resolver tais litígios e dispensa açodamentos ou interpretações fora do
espírito do Direito. O que não se pode admitir são retaliações, intimidações,
asfixia econômica ou regulamentações que visam a enfraquecer a atividade
jornalística e a liberdade de expressão, informação e manifestação de ideias.
Louvável, a partir das revelações em curso, tem
sido a autocrítica de parte da imprensa sobre a cobertura da Lava Jato e o
reconhecimento de excessos. A Folha de S.Paulo registrou (A
Folha faz autocrítica), coluna publicada em 06/10) encontro que reuniu
ex-ombudsmen e Flávia Lima, ombudsman atual, com a Secretaria de Redação. Foi
um momento de reflexão sobre a conduta e a imparcialidade dos procuradores e
dos juízes envolvidos na operação, particularmente Sérgio Moro. A constatação
de excessos também foi expressa, em carta aos leitores, pela revista Veja (19/06/09),
com o significativo título “ninguém está acima da lei”.
Ao dissecar suas próprias responsabilidades, a
imprensa lembra a frase atribuída ao ex-presidente da República Juscelino
Kubitschek: “Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro”. A
busca do que é correto, corrigir o errado, ajustar e refazer o caminho para o
que é justo, contrastam com as reiteradas declarações do atual presidente que
além de depreciar o papel social da imprensa, ameaçam o trabalho dos
jornalistas e insultam as organizações onde atuam.
Na Guerra contra o Vietnã, informações oficiais
iludiam a opinião pública dos EUA ao alardear que as batalhas estavam sendo
vencidas e o número de baixas era reduzido. Os documentos oficiais do
Pentágono, publicados inicialmente pelo jornal The Washington Post,
desmascararam a farsa. Autoridades governamentais lutaram ferozmente para
manter a mentira. Foram derrotadas. “A imprensa deve servir aos governados, e
não aos governantes”, foi a célebre sentença da Suprema Corte norte-americana
ao absolver a imprensa e liberar os papéis secretos do Pentágono.
A matéria-prima na troca de mensagens de um
grupo de procuradores e juízes é justamente a dolorosa percepção do quanto
se pode macular o interesse público.
Que estas revelações sejam a “porta” para a
revisão do nosso já tão comprometido Sistema de Justiça.
Ao explicar a linha editorial adotada para
examinar o vasto material, retirando conteúdos inadequados e conversas que
poderiam infringir o direito à privacidade, The Intercept Brasil resume de
forma admirável o trabalho: “empregamos o padrão usado por jornalistas em
democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou
engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas”. Nada mais ético,
relevante e oportuno.
Marco Aurélio de Carvalho é advogado
especializado em Direito Público. Sócio fundador da Associação Brasileira de
Juristas para a Democracia e do Grupo Prerrogativas.
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