A NOITE DE LORCA, RILKE E ATALLAIA
Por Rossini Corrêa |
A tradição judaica, desembarcada de forma seminal na narrativa crística, da Torah para a Bíblia trouxe consigo, no Gênesis, o primeiro dos livros mosaicos, constitutivos do Pentateuco, a revelação, tanto da criação do Universo, quanto do advento da raça humana. De Deus foram originários os céus e a terra. Esta, vazia, destituída de seres, coberta pela escuridão do mar profundo, enquanto o Espírito de Deus vagava por sobre as águas, desde onde, nas esferas, pode Ele promover a regência de sua obra construtiva: -
“Que haja luz!
Sem dúvida que a pintura das origens em epígrafe é fundadora de um continente, dos mais expressivos, nos universos das cosmovisões conexas à visceral necessidade humana de estruturar sentidos para a existência: sua, dos outros, da natureza, das vidas e das mortes, enfim, do infinito dos mundos. “Dia” e “Noite” ali estão estampados como extremos simbólicos, a repercutir no inconsciente coletivo da humanidade, em consonância com a formulação conceitual de Carl Gustav Jung. Ainda mais, registre-se, perante todo o romance do imaginário, contido no pequeno nexo frasal – “A noite passou, e veio a manhã” -, ressonante na irrealizada aspiração humana, eternamente posta e reposta, sempre recorrente, de conquista da harmonia universal. Sim, porquanto o terror cósmico dos primórdios está presente no lusco-fusco dos tempos, na luz e na sombra bruxuleantes, querendo ser a aurora diamantina, mas podendo ser e reacontecer como o caos da treva caliginosa.
Pôr evidente, signos polissêmicos como “Noite” e “Dia” não poderiam deixar de repercutir no mito, na magia, na religião, na filosofia e na ciência. O mito da caverna, exposto na República, de Platão, com efeito, é testemunha plural da presença ora reivindicada. No mínimo, o mítico, o poético e o filosófico reunidos, na caverna como metáfora, buscam a resposta para a difícil equação do trânsito da treva caliginosa para a aurora diamantina do Ser. Platão, que foi chamado pelo jovem Karl Marx de o Divino Platão, impactado por seu aprendizado esotérico no Egito, em si mesmo, ambicionava o íntimo convívio com os vaporosos anelos no Uno, da Luz, em síntese, do Sumo Bem.
Em consequência, “Noite” e “Dia” irrigaram a sua presença, tornada constante, na poesia e no canto universais. Sem nenhum labor de pesquisa ou de esforço de memória, ao simples correr da pena, como olvidar Federico Garcia Lorca, quando deslumbrado poeta em Nova York, entre a detida lua e a luz violeta, a noite fendida e a chegada à neve, a mulher temente à luz e os galos trêmulos de claridade, a noite seca e a amêndoa de fogo, o ao redor do sol e o turvo sangue, os olhos de escuridão e os céus hirtos, as espadas de luz e a onda de lama e vagalumes, as formas que buscam o cristal e o negro duro do cristal? Com Rainer Maria Rilke não seria diferente, jungido à grandeza da noite, sedento entre o anjo raro e a limpidez rubra do vinho, sentimentos estrelados e peles morenas, o corpo esplêndido e a morte ordenadora, a claridade da ladeira e a noite obstinada, o cisne da eternidade e as noites mal imitadas, a respirada escuridão e a direção dos astros, a proximidade da clareira e a sobrancelha sobre a torrente do olhar.
Na poesia brasileira também não seria diverso, bastando recordar a noite noitíssima de Mauro Motta, o faz escuro, do cantar Thiago de Mello, a noite veloz de Ferreira Gullar e o seu galo, a ser mero complemento das auroras. A grande poesia dos maranhenses, notável capítulo da poética brasileira, para ser econômico, contemplou a noite espectral, do soneto José Sarney, o azul em sua gênese, de Bernardo Almeida, as aquarelas de luz, de Paulo Nascimento Moraes, as lavouras no horizonte azul, de José Chagas e o azul em esfinges, de Nascimento Moraes Filho. E, de maneira complexa, pode-se garantir que, sem exclusões, duas metáforas presidem as poéticas de Nauro Machado e de Bandeira Tribuzi: a da noite da alma humana, na vertente naureana e a do dia da emancipação humana, na esfera tribuziana.
Desta maneira, compreende-se que o poeta, compositor e cantor Fernando Atallaia não está só, se encontra povoado, quando da tessitura do seu cântico poético intitulado “A Noite”, repleto de sutilezas verbais, relativas ao Ser e ao Querer nela contidos. Assim também o Pedir, o Negar, o Reger, o Cegar, o Medir, o Seguir e tudo o mais. Sucede que o noturno posto em questão é um ser vivo em seu evolver, perpassado pelo inexistido novamente, composto por encontro e esquecimento, por tentativa e deserto e, sobretudo, pelo não é só: criança, alcance e aliança.
Feita, refeita e desfeita, “A Noite” dos lençóis, camas, chamas e água fria, batons vermelhos em meninas pálidas, é o continente dos contrapontos do dinheiro e do sentimento, no ausente beijo nos olhos da alma que desamanhece sem atingir novamente o que, perdido, desencontrou entre luzes fugidias. Não há salto Luís XV no canto de Fernando Atallaia, o qual, neste poema sinfônico, se coloca no altiplano da música e da literatura maranhenses, em si reunidas, como signos prognósticos, como sonhava Immanuel Kant, de que desse futuro não haverá saudade, mas somente a luz da certeza, na clarividência de “A Noite”. Assim seja!
Da Associação Nacional de Escritores-ANE, Rossini Corrêa é membro da Academia Maranhense de Letras-AML e Academia Brasiliense de Letras-ABrL. Tem doutorado em Direito Canônico pela Faculdade de Teologia Filadélfia Internacional e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Autor de obras fundamentais da Literatura Maranhense, tais como Canto Urbano da Silva, Baladas do Polidor de Estrelas, O Modernismo no Maranhão e Almanaque dos Ventos, é também jurista, teólogo, ensaísta e sociólogo.
Nasceu em
São Luís em 1955.
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Fernando Atallaia é um artista pleno, admirável, em qualquer área que se colocar para fazer, criar ou produzir - música, poesia, cultura, mídia - do qual o Maranhão deve se orgulhar como filho e semente sua, que merece muito mais reconhecimento do que o que já tem conquistado. "A Noite" é um mergulho psicodélico (em espiral, como eu disse ao poeta), na qual, depois de mergulharmos, nos sentimos tomados, arrastados para ir até o final, pela poesia, pelo voz, pelo instrumental que nos convida à experiência madura da noti-vagação, da sua atmosfera e embriaguez. O poeta cantor é dono dela, maduro, e nos convida para seus meandros e imagens. O texto dialógico do Grande Rossini faz jus a essa poderosa voz do Maranhão.
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